Navegue entre as comunidades do Território Guaí e veja seus pontos de interesse
A comunidade quilombola de Tabatinga está localizada no distrito do Guaí, zona rural do município de Maragogipe, no Recôncavo Baiano. O nome vem do rio Tabatinga, que atravessa a região e deu origem à ocupação do território. A palavra tem origem indígena e significa “barro branco”, uma referência ao tipo de argila encontrada às margens do rio.
Os mais velhos contam que os primeiros moradores chegaram à Tabatinga em busca de liberdade e de um pedaço de terra para viver do próprio trabalho. As terras onde se formou a comunidade pertenciam à antiga Fazenda Capanema, de Juarez Guerreiro, e faziam parte de um conjunto de grandes propriedades controladas por famílias de fazendeiros, como os Guedes. O povoado se estruturou com o tempo, à medida que famílias negras começaram a ocupar os sítios, plantar mandioca, criar animais e mariscar nas marés próximas.
Durante muito tempo, a vida foi marcada pelo trabalho pesado e pelas desigualdades. As famílias viviam do plantio de mandioca, da produção de farinha e da coleta de mariscos. A roça era feita à enxada, e o trabalho de descascar mandioca ficava quase sempre nas mãos das mulheres e das crianças. O dinheiro era escasso, e muitas vezes a farinha e o dendê eram as únicas moedas de troca. Os depoimentos de moradoras como Maria da Conceição, Joelma e Gilete Silva Costa mostram a dureza da vida naquele tempo: acordar cedo, ir à maré, voltar à tarde para a roça e ainda encontrar força para cuidar da casa. As meninas muitas vezes deixavam de estudar para ajudar na casa de farinha ou na lavoura.
A Certidão de Autorreconhecimento da Tabatinga como comunidade quilombola foi publicada pela Fundação Cultural Palmares em 11 de julho de 2005, resultado da mobilização de lideranças locais, com destaque para Lenira Calheiros, mulher quilombola e marisqueira, também líder da comunidade vizinha Jirau Grande. Lenira e sua família têm raízes profundas na Tabatinga, descendendo de Leandra, considerada uma das fundadoras da localidade. Os relatos sobre Leandra lembram que ela era uma mulher indígena, e muitos moradores reconhecem traços dessa ancestralidade nos costumes e nas feições de seus descendentes.
Ao longo das décadas, o território foi sendo transformado. As antigas fazendas foram desmembradas, e os sítios familiares se consolidaram como base da economia local. Hoje, a comunidade mantém o costume de plantar mandioca e produzir farinha, que é consumida e vendida em feiras da região. Ainda há quem cultive roças pequenas e crie galinhas e porcos, mantendo viva uma forma de vida baseada na cooperação e no uso sustentável da terra.
As mulheres continuam desempenhando papel central. Além da roça e da farinha, são elas que mantêm viva a mariscagem, uma tradição herdada das mães e avós. Nos mangues e rios da região, recolhem sururu, ostra, lambreta e caranguejo, enfrentando o lodo e o sol para garantir o sustento da casa. Essa atividade, muitas vezes desvalorizada, representa um importante saber ecológico e uma forma de resistência.
Mas o ambiente mudou. As matas que cercavam o rio Iaúna, um dos afluentes do Tabatinga, foram derrubadas, e as nascentes secaram. Moradores relatam que o rio, antes cheio de camarões e peixes, hoje está quase seco. O desmatamento, o lixo e as mudanças no uso do solo afetaram a vida no mangue. Mesmo assim, a comunidade insiste em preservar o que resta. As mulheres e os jovens participam de mutirões de limpeza e alertam sobre a importância de cuidar da natureza e não jogar resíduos nos rios.
A Tabatinga também é um espaço de memória. Moradores lembram das festas antigas com saudade: os carurus de São Cosme e Damião, as missas, as festas de reis e, principalmente, o São João, que durava quatro dias e reunia todas as famílias do Guaí. As ruas se enchiam de fogueiras, danças e comidas típicas, e as pessoas passavam de casa em casa, celebrando juntas. Hoje, essas tradições são mais raras, mas continuam vivas na lembrança dos mais velhos e em algumas celebrações familiares.
A comunidade tem orgulho de suas rezadeiras, figuras de fé e sabedoria popular que curavam o “olhado”, o vento e até o fogo. Nomes como Dona Hermira e Dona Cícera são lembrados com respeito. As novas gerações, embora mais afastadas dessas práticas, reconhecem a importância de manter viva a memória e o aprendizado deixado pelos mais velhos.
Os moradores afirmam que Tabatinga mudou muito, mas que ainda há desafios. A estrada de acesso continua precária, o transporte é difícil e faltam oportunidades de trabalho. Mesmo assim, muitos dizem que não trocariam o lugar por nenhum outro. Para eles, Tabatinga é sinônimo de paz, amizade e pertencimento. Os vizinhos se ajudam, compartilham alimentos e mantêm viva a tradição da solidariedade.
“Eu gosto de viver aqui. É meu lugar. A gente quer ver a comunidade crescer, mas sem perder o que ela tem de mais bonito: o cuidado com o outro, o amor pela terra e o respeito pela natureza.”
Tabatinga é, assim, um território de sabedoria e resistência. Um lugar onde o passado e o presente se misturam, e onde a luta por dignidade continua sendo feita no ritmo das marés, no trabalho da roça e nas histórias contadas à beira do rio.
“Antigamente, a gente vivia da maré e da roça. De manhã era maré, de tarde era roça. Tinha dia que não comia nada de venda, só o que o mangue dava. Era difícil, mas ninguém passava fome.”
Antigamente, o São João da Tabatinga durava quatro dias. As famílias acendiam fogueiras, cozinhavam juntas e dançavam até o amanhecer. As ruas se enchiam de alegria, e cada casa recebia visitantes com comida e música. Hoje, as festas grandes quase não acontecem mais, mas a lembrança do São João coletivo ainda emociona quem viveu aquele tempo.