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O Guaruçu é uma comunidade quilombola situada no distrito do Guaí, município de Maragogipe, no Recôncavo Baiano. O nome vem do rio que nasce na própria localidade, palavra de origem tupi que significa “rio dos guarás”, lembrando a presença das aves vermelhas que habitavam a região.
A história do lugar está ligada às antigas fazendas de cana-de-açúcar e ao trabalho forçado nas propriedades da família Pereira Guedes. Durante séculos, as famílias negras que viviam nessas terras foram obrigadas a entregar parte do que produziam aos fazendeiros, num regime conhecido como terça ou renda. Mesmo com a dureza do trabalho e a vigilância dos “capitães do mato”, muitos fugiram e encontraram abrigo nas matas próximas, unindo-se a indígenas que conheciam o território.
Assim nasceram os primeiros agrupamentos de famílias que, com o tempo, transformaram o refúgio em moradia e a sobrevivência em modo de vida. O alto do terreno oferecia vista para as ruínas do antigo engenho e proteção contra as tropas que caçavam fugitivos. Era o mesmo “giral grande” de que falavam os mais velhos — uma estrutura de madeira usada para observar o caminho e garantir a segurança — símbolo da vigilância e da liberdade.
Hoje, o Guaruçu abriga cerca de cinquenta famílias que vivem da roça e da farinha de mandioca. A paisagem se divide entre quintais, roçados e casas de taipa ou alvenaria simples. A cada três moradias, há uma casa de farinha — o coração do trabalho coletivo.
A agricultura de subsistência garante o alimento e parte da renda: planta-se mandioca, milho, feijão e hortaliças. Os excedentes são vendidos ou trocados nas feiras do Guaí. A mariscagem, comum em outras comunidades próximas ao mangue, é rara aqui, por causa da distância da maré. O saber do plantio, das chuvas e das fases da lua é transmitido pelos mais velhos, que também ensinam o uso das plantas medicinais cultivadas nos quintais. As folhas são as mais usadas, em chás e infusões que curam o corpo e fortalecem a alma.
O território é mais do que espaço de trabalho: é lugar de memória. As famílias Calheiros, Barros e Conceição mantêm os laços de parentesco que estruturam a vida comunitária. “Quem nasce aqui volta pra cá”, dizem os moradores, reforçando o sentimento de pertencimento.

As mulheres do Guaruçu sempre sustentaram a comunidade. Marisqueiras, lavradoras, parteiras, rezadeiras e mães de santo compõem a base do lugar. Dona Lenira Calheiros, liderança histórica, participou do processo de reconhecimento quilombola, ajudando vizinhos com alimentos e roupas nos tempos de escassez.
Outras, como Dona Liete e Dona Nezinha, carregam na memória as lutas contra o domínio dos fazendeiros — como o dia em que um deles mandou derrubar a casa de uma família inteira. Apesar das perdas, essas mulheres transformaram a dor em força coletiva.
A sabedoria feminina também vive nas folhas e nas rezas: há quem cure de “olhado”, de “vento” e de “cobra”, como ensinavam as avós. Cada oração é uma herança de resistência, cada gesto, um fio que liga o presente à ancestralidade.
A espiritualidade no Guaruçu une o catolicismo popular e as tradições afro-indígenas. A fé está presente nas festas de santos, nas oferendas aos encantados e nas folhas que curam. Silvana Brito Moraes, zeladora de orixá do Ilê Axé Odóiá, explica: “Eu zelo por orixá, por mentes cansadas e ensino um pouco das maneiras passadas de avó e de tio.”
O mato e o rio são espaços sagrados. Ali vivem entidades protetoras como a “Vó do Mangue” e o “Caboclo do Sertão das Matas”. A crença na força da natureza revela uma ética de cuidado: cuidar da terra é agradecer pela vida. No Guaruçu, espiritualidade e território são inseparáveis.
O processo de autorreconhecimento começou em 1999, quando a Pastoral dos Pescadores levou à comunidade a noção de “direitos e deveres”. “Pior do que tá, não fica”, disse Lenira, quando decidiu continuar a luta.
Em 2005, o Guaruçu integrou o conjunto de comunidades do Guaí — Giral Grande, Tabatinga, Guerém e Porto da Pedra — que receberam a Certidão de Autorreconhecimento da Fundação Cultural Palmares. Mais tarde, em 2020, foi criada a Associação Quilombola Guaypanema, consolidando a organização local.
A luta, porém, continua. A comunidade enfrenta carência de infraestrutura, conflitos fundiários e falta de apoio às suas produções. Ainda assim, o sentimento de dignidade se fortalece. Como diz um morador: “Antes a gente não tinha documento nem autoestima. Hoje o governo respeita mais, e a gente aprendeu a se olhar diferente.”

O Guaruçu é um rio de memória que segue correndo, mesmo quando o caminho é estreito. As famílias buscam políticas públicas, sonham com uma escola própria e com o fortalecimento da casa de farinha.
O orgulho quilombola floresce nas novas gerações, que estudam, voltam e continuam o que os antigos começaram. “Aqui é o meu lugar”, resume Dona Nina, olhando o mesmo chão onde os antepassados resistiram.
O futuro do Guaruçu depende de manter viva a história contada nas rodas, nas rezas e nas folhas. Porque cada gesto de cuidado — plantar, rezar, ensinar — é também um modo de dizer que o quilombo permanece.